O Belo mal-estar do imigrante
(Um conto fictício, com nomes fictícios, sobre a experiência de ser expatriado)
Fazia alguns meses desde que Bruna mudou-se para Amsterdam e pela primeira vez, ela utilizaria seu cartão de museu. Com essa assinatura poderia circular livremente pelos quatrocentos estabelecimentos de cultura do país pagando apenas uma taxa anual mínima. A cada parada mais longa em algum cruzamento, abria a bolsa para checar se o verso estampado em tons de azul daquele pedaço de plástico ainda estava lá. Era o cartão mais bonito que tinha. Pouco depois de chegar no Rijks, ouviu o som alto de uma sirene tocando por cinco minutos. Seu celular vibrava a notificação, em holandês, avisando que este era apenas um teste. Todas as primeiras segundas-feiras do mês, ao meio dia em ponto, o som que costumava alertar ataques de guerra era colocado em prova. No caso do barulho acontecer em qualquer outro momento, a recomendação era de que se trancasse em casa, deixasse as crianças na escola e aguardasse até novas orientações. Já fazia muitos anos desde a última guerra, mas ali, esse seguia sendo um acontecimento presente. O país estava preparado para um evento daquele porte, ao contrário do Brasil, sua terra natal.
Assim que começou a circular, chamou-lhe a atenção a quantidade de figuras religiosas, todas iguais ao toque do seu olhar. Os labirintos de passagem entre as telas, móveis e pequenas esculturas decorativas a confundiam entre as salas A12 e B23, fazendo-a caminhar sua meta de passos diária com muita facilidade. Espertos, como sempre, eram seus colegas expatriados orientais, andando com seus banquinhos dobráveis, sem hesitar o relaxamento da ponta dos seus glúteos no assento gelado e sem vida que carregavam entre uma galeria e outra. Logo se deixou encantar pelo espaço. O papel de parede, tradicional, lembrava motivos vitorianos de veludo. Muito macio. Mas não ousou tocar. A primeira escadaria, opulenta em formato de trapézio, mostrava os degraus afundados no meio, porém com uma madeira brilhante. O corrimão esculpido em madeira maciça deixava claro a riqueza do ambiente. O cheiro de limpeza quase lhe ardia as narinas. Mais do que as obras de arte em si, impressionava-lhe o fato de estarem todas tão bem protegidas e preservadas, em uma iluminação calculada, fazendo-as descansarem eternamente numa espécie de brilho dourado particular, como aquele que faz nossos autorretratos ficarem bons uma hora antes do sol se pôr. Quando aproximava-se de uma esquina, via os vasos de flores desproporcionalmente grandes, todos com plantas naturais e primaveris.
Bruna posava para o filme que se passava em sua cabeça, debruçando-se sobre o guarda-corpo do segundo andar da imensa biblioteca que o museu abrigava. A arquitetura elaborada a fazia sentir-se a protagonista de uma película antiga. Até que, no movimento de suspirar e virar-se para o restante dos artefatos daquela sala, esbarrou num retângulo acrílico que estava na altura de sua cintura. Exibia pequenos e brilhantes metais cunhados de diversos países. Era um repositor de moedas que lhe chamou a atenção. Um real estava lá e uma risada espontânea lhe sai da boca. Prestou um pouco mais de atenção e viu na parede ao lado algumas pedras preciosas. Como nos livros e na tevê, o formato e o brilho de um diamante realmente tinha algo de especial. O que Bruna não esperava era que, na legenda abaixo da pedra exposta, estava a descrição aberta e desavergonhada de que o agregado de minerais fora sequestrado da Indonésia colonial, puxando para fora da sua garganta uma interjeição que rendeu alguns olhares vizinhos. Agora, mais preparada, tapou a boca com as mãos suadas e de unhas bem feitas ao passar pelos quadros gigantescos da coleção seguinte. Não tratava-se apenas de inocentes pinturas de óleo em tela, mas de arte feita com tinta extraída de pau-brasil roubado. A autocrítica lhe parecia tanto justa, quanto descarada.
A empolgação foi se esvaindo entre tanta beleza. Talvez beleza demais. O excesso de elementos, de salas e pessoas a absorvia e seu cansaço abraçava sua hipocondria. Bruna já tinha lido sobre a síndrome de Stendhal, aquela em que os visitantes de templos de arte e arquitetura podem psicossomatizar ao estarem em contato com expressões artísticas demais e sentir mal-estar, estresse, vertigens e até vomitar. Contudo, sua confusão corporal, tinha mais a ver com uma concepção de história e de exploração global que começava a elaborar do que o contato com o belo.
Sua última parada foi num mapa da cidade Amsterdam, na qual, bolinhas pretas aparentemente feitas a mão com um marcador permamente indicavam em quais locais foram encontrados judeus durante a segunda guerra. Um mapa, organizado, e o nome das ruas emoldurado ao lado. Buscou seu endereço e o encontrou. Talvez ali, no seu prédio, um imigrante como ela, foi encontrado. Ele teve abrigo, então alguma alma boa deve ter frequentado seus arredores. Uma respiração funda ao perceber o aconchego da constatação. Porém, logo o resmungo nasal, quando seu nariz solta o ar de uma maneira audível e expressiva, e sua cabeça balança de um lado para o outro, a impede de esconder de si mesma que assim como seu possível antepassado foi escondido, também foi encontrado e marcado naquele mapa como mais uma das tantas bolinhas pretas. Ela estava ali, deleitando-se com o acesso a toda aquela riqueza de belas histórias contadas por peças antigas, mas sem possuí-las e sem pertencer. No dia em que a sirene tocasse, como no passado já tocou, não teria ninguém em quem confiar. O volume do seu corpo e da expressão dele a denunciaram durante toda a visita. Era fácil perceber que algo nela não combinava, sua falta de elegância ou excesso de problematização, não cabiam ali.